Guia Prático de Direito Humanitário - disponível online em Árabe, Inglês, Francês e Russo.
O discurso antiterrorista sempre fez parte da retórica estatal na abordagem de conflitos armados não internacionais. Em 1999, a Federação Russa se recusou a usar as palavras "guerra" ou "conflito armado" ao mencionar as operações antiterroristas na Chechênia. No entanto, desde o ataque às Torres Gêmeas em Nova York, em 11 de setembro de 2001, esse tipo de retórica foi transformado em plataforma jurídica internacional da luta global contra o terrorismo. Nas últimas duas décadas, a referida plataforma foi desenvolvida e validada sob a supervisão das Nações Unidas.
É difícil medir com precisão o impacto específico do desenvolvimento dessa plataforma sobre a ação humanitária imparcial, uma vez que a ação humanitária é influenciada pelas diferentes características e dinâmicas de cada conflito. No entanto, o impacto legal da plataforma antiterrorista e seus efeitos sobre a segurança dos trabalhadores humanitários e suas atividades, além do impacto sobre as pessoas que se quer atender, é evidente. As estatísticas referentes a incidentes de segurança relatados por equipes de campo revelam uma mudança nos tipos de ocorrência que temos observado. Ataques, prisões, detenções e acusações contra profissionais humanitários por autoridades estatais são muito mais comuns do que sequestros e ataques por grupos não estatais.
Por que as atividades médicas e humanitárias tradicionalmente conduzidas por Médicos Sem Fronteiras (MSF) podem agora estar expondo nossas equipes e pacientes a novos perigos?
O aspecto comum a esses incidentes é o fato de terem sido amparados em leis criminais e antiterroristas, impostas por Estados, que criminalizaram certas atividades médico-humanitárias sancionadas pelo Direito Internacional Humanitário. O Direito Internacional Humanitário, ou DIH, é o conjunto de leis referentes a conflitos armados internacionais e não internacionais, que inclui regras específicas que resguardam a proteção de civis, de pessoal médico e de suas respectivas estruturas, e o direito de receber cuidados médicos imparciais.
Quatro das atividades realizadas por MSF são especialmente vulneráveis a acusações de cumplicidade criminosa terrorista:
1. O ato de prestar ajuda humanitária a pessoas que vivem em territórios disputados ou sob controle de grupos identificados como terroristas ou criminosos pode ser considerado uma forma de apoio material a terroristas.
2. O ato de manter contato com líderes de grupos armados identificados como terroristas pode ser considerado um crime em si.
3. O ato de transportar, por razões médicas ou humanitárias, suspeitos de terrorismo ou criminosos pode ser considerado o equivalente a organizar a fuga desses supostos terroristas (poderia ser interpretado como uma ajuda para que eles deixassem o campo de batalha ou para que se escondessem em estruturas médicas, da quais, supostamente, sairiam sem serem interrogados ou presos).
4. O ato de oferecer tratamento a pacientes suspeitos de serem terroristas ou criminosos em estruturas de saúde também pode ser considerado um ato de cumplicidade, que visa a dar refúgio e ocultar criminosos e terroristas.
Este risco legal não é hipotético; já se concretizou em inúmeros locais onde trabalhamos. O risco específico associado às acusações criminais se deve ao fato de que a responsabilidade criminal é sempre assumida por pessoas. Independentemente dos compromissos assumidos por MSF com relação ao nosso dever de cuidar de nossa equipe, não podemos substituir nossa responsabilidade institucional por aquela incorrida por indivíduos.
Por ter atuado sem o consentimento do governo, MSF foi considerada uma organização terrorista na Síria, devido ao apoio material que prestava às pessoas que vivem em territórios sob controle de grupos identificados como terroristas. Funcionários de MSF foram presos, detidos e acusados de cumplicidade e atividade terrorista.
Na Nigéria, o promotor militar acusou MSF de fornecer apoio material aos terroristas, acusação esta embasada na condução de atividades voltadas para pessoas que vivem sob controle de grupos considerados criminosos ou terroristas. A equipe de MSF também foi acusada de conspirar com grupos criminosos pelo fato de ter estabelecido contato para organizar atividades humanitárias. Na República Democrática do Congo, nosso pessoal foi condenado por facilitar contatos com grupos considerados criminosos ou terroristas. Em Camarões, profissionais de MSF foram acusados e detidos por cumplicidade em um crime terrorista por terem transportado pessoas feridas e levado ajuda a áreas controladas por grupos considerados criminosos ou terroristas.
Equipes e pacientes de MSF também foram vítimas de ataques a hospitais por exércitos estatais na Síria, no Iêmen, no Afeganistão e em outros lugares. Frequentemente, alega-se que tais ataques são erros. No entanto, um aspecto que esses ataques têm em comum é que os alvos são sempre instalações de saúde onde os “não civis” feridos e doentes pertencentes a grupos considerados criminosos ou terroristas estão sendo tratados.
Desde 2016, MSF tem feito esforços para se posicionar contra essa tendência por meio de lobby político e legal junto à mais alta cúpula da ONU, apelando aos Estados-membros que reconheçam a precedência da regra do DIH sobre as operações e regulamentos de combate ao terrorismo.
A principal ferramenta que reafirma esta precedência está amparada na adoção de isenções humanitárias nas políticas nacionais e internacionais de combate ao terrorismo adotadas por Estados e organismos internacionais. Esta ferramenta permitirá que as atividades humanitárias sejam isentas da aplicação de limitações ou sanções antiterroristas.
O apelo para incluir cláusulas de isenção nas resoluções da ONU e na legislação nacional para as ações humanitárias conduzidas de acordo com o DIH começou a dar resultados. A legitimidade da oferta de ajuda humanitária e médica durante conflitos armados marcados pelo “terrorismo” foi reafirmada, e os Estados, agora, devem garantir que as medidas de combate ao terrorismo não prejudiquem as atividades de ajuda humanitária sancionadas pelo DIH.
Esse é apenas um primeiro passo. MSF não defende o DIH por ingenuidade no que tange o poder da lei, mas porque o DIH preconiza que tratar “inimigos” e assistir as pessoas sob seu controle é um empreendimento legítimo. É essencial que o Direito Internacional Humanitário continue sendo a língua comum para que se proteja as equipes expostas em áreas de conflito.
A melhor proteção das equipes em campo é a total compreensão não apenas dos riscos de segurança comuns, mas também dos novos riscos legais que estão sendo instrumentalizados para fragilizar a legitimidade das atividades de ajuda humanitária. Isso deve ser apoiado com suporte e treinamento para ajudar essas equipes a negociar e a formalizar uma plataforma operacional e práticas de trabalho compatíveis com o DIH, capazes de resistir à demonização terrorista do inimigo e à criminalização da ajuda humanitária pelos governos.
Françoise Bouchet-Saulnier, ex-diretora do departamento jurídico interseccional de MSF, e autora do Guia Prático de Direito Humanitário.