Opinião
Guerra, violência, desastres naturais, surtos de doenças, aumento da inflação e disparada dos preços. Todos esses fatores contribuíram para um aumento geral das necessidades das pessoas, às quais cerca de 68 mil profissionais de Médicos Sem Fronteiras (MSF) responderam em mais de 70 países ao redor do mundo em 2022.
Violância no Haiti
A situação política, econômica e de segurança no Haiti, que já era altamente volátil, se deteriorou ainda mais em 2022, deixando o país à beira do colapso. No entanto, o cenário despertou pouca atenção e assistência internacional. Os níveis extremos de violência na capital, Porto Príncipe, fizeram com que algumas comunidades ficassem encurraladas, sem acesso a alimentos, água ou cuidados médicos. Conseguimos negociar a aceitação da nossa presença e atuação por parte das gangues armadas que dominam bairros inteiros, mas elas frequentemente atacam pessoas nas ruas e sequestram profissionais de saúde quase que impunemente.
O hospital de trauma de MSF em Tabarre e seus dois centros de estabilização em Turgeau e Carrefour – todos bairros da capital – enfrentaram sobrecarga frequente devido ao número de pacientes com ferimentos relacionados com a violência, particularmente durante o recrudescimento dos combates em maio. O nosso hospital Drouillard, no bairro de Cité Soleil, frequentemente se vê em meio às disputas territoriais entre grupos armados, e a violência, que costuma ser intensa, forçou a suspensão de nossas atividades médicas por diversas vezes ao longo do ano. O Haiti é atualmente um dos países mais desafiadores para a atuação de MSF, considerand-se os riscos de segurança para nossa equipe e o acesso a suprimentos.
Escalada da guerra na Ucrânia
MSF atua no leste da Ucrânia desde o início da guerra, em 2014, prestando apoio às pessoas afetadas pelo conflito. No entanto, em 24 de fevereiro de 2022, nossas equipas foram surpreendidas pela dramática escalada do conflito, após ataques em larga escala perpetrados por forças russas em todo o país. Rapidamente, ampliamos a nossa resposta, fornecendo pessoal e materiais, bem como treinando cirurgiões e profissionais de saúde ucranianos para ajudá-los a lidar com grandes fluxos de pacientes feridos. Prestamos assistência às pessoas que optaram por ficar em suas casas, àquelas que se mudaram para outros locais do país e às inúmeras que optaram por buscar refúgio em países vizinhos, como a Polônia, a Moldávia, a Belarus e a Rússia, oferecendo cuidados médicos e de saúde mental.
O recrudescimento da guerra nos apresentou vários desafios. Tivemos de aumentar rapidamente a oferta de atividades para responder a uma ampla gama de necessidades - não apenas relacionadas com o tratamento de traumas físicos e mentais associados à guerra, mas também condições pré-existentes, como as doenças não transmissíveis - e nos adaptar a um contexto em plena mudança, com suas linhas de frente se alterando em ritmo acelerado. Tivemos de equilibrar nosso anseio por
prestar cuidados onde eram muito necessários com a necessidade de garantir a segurança de nossa equipe, incluindo nossos muitos profissionais ucranianos que tinham sido deslocados.
Para enfrentar esses desafios, encontramos novas maneiras de nos aproximar o máximo possível das pessoas, como, por exemplo, por meio de trens especialmente equipados para transportar pacientes para longe das zonas de perigo; administrando clínicas móveis em abrigos para deslocados e em estações de metrô, onde as pessoas se abrigavam quando as bombas eram lançadas indiscriminadamente; e disponibilizando linhas telefônicas diretas para consultas relacionadas com doenças não transmissíveis.
Impacto de longo prazo da COVID-19
No início de 2022, quando a pandemia entrou em seu terceiro ano, as equipes de MSF ainda estavam respondendo à COVID-19 em muitos lugares. Continuamos oferecendo tratamento em países como Iraque e o Reino de Essuatíni e administrando vacinas no Líbano, África do Sul e Uganda.
Enquanto isso, a Campanha de Acesso a Medicamentos de MSF destacou a necessidade da renúncia à propriedade intelectual que permitiria uma produção maior e mais rápida de vacinas para responder a esta e a futuras pandemias. Na medida em que nossa resposta à COVID-19 foi se reduzindo com o passar dos meses, nossas equipes trabalharam para responder aos impactos da pandemia tanto nas pessoas quanto nos sistemas de saúde, representados, por exemplo, pela falta de vacinação de rotina, que causou surtos de doenças evitáveis por vacinas em muitos países.
Ressurgimento da cólera
Assistimos a um aumento extraordinário da cólera em 2022; 30 países registraram casos ou surtos da doença. MSF atuou na resposta a esta doença altamente contagiosa em pelo menos 10 países, incluindo Nigéria, Síria, Camarões, Níger, Líbano, República Democrática do Congo e Quênia. Diferentes fatores, como desastres naturais, mudanças climáticas, escassez de água e crises humanitárias, como conflitos, contribuíram para o aumento mundial do número de casos.
No Haiti, após três anos sem registro de casos de cólera, houve um grande surto no final de setembro. Até o final do ano, foram mais de 15 mil casos, a grande maioria dos quais tratados em nossas instalações. Nossas equipes também contribuíram com os esforços feitos para vacinar as pessoas em meio aos surtos.
Diante de uma escassez global de vacinas contra a cólera, o Grupo de Coordenação Internacional - do qual MSF é membro - tomou a decisão sem precedentes de recomendar a estratégia temporária de vacinação em dose única, e não com as duas doses habituais, a fim de proteger mais pessoas contra a doença.
As marcas deixadas pela crise climática
Mais uma vez, em 2022, MSF prestou assistência às pessoas afetadas por eventos climáticos extremos, como inundações no Sudão do Sul e na África do Sul; seca na Somália; e ciclones em Madagascar e nas Filipinas.
Em janeiro, as equipes de MSF ofereceram tratamento a crianças com desnutrição nos arredores de N'Djamena, no Chade, durante a estação das chuvas mais seca e curta de que se tem lembrança. No entanto, meses depois, na mesma região, em agosto, chuvas sazonais excepcionalmente fortes provocaram o transbordamento dos rios, causando inundações que desalojaram milhares de pessoas.
Em junho, o Paquistão foi atingido por inundações severas, que deixaram um terço do país submerso. Três meses depois, algumas áreas continuavam inundadas. A devastação deslocou mais de 30 milhões de pessoas e deixou milhares de mortos e feridos. Em resposta, as equipes de MSF prestaram apoio médico, nutricional e de água e saneamento em grande escala nas províncias de Sindh e Baluchistão.
Próximo do final do ano, começamos a trabalhar em Kiribati para melhorar a oferta de cuidados de saúde maternos, especialmente voltados para o diagnóstico e o tratamento de diabetes, uma doença que é prevalente nessa nação insular do Pacífico, onde o aumento do nível do mar causou a erosão e a salinização das terras usadas para plantio.
Aumento dos casos de desnutrição
Tratar um grande número de crianças com desnutrição foi outro foco de nossas atividades durante o ano. Assim como acontece com a cólera, as causas da desnutrição são complexas e multifatoriais: seca, más colheitas, colapso dos sistemas de saúde e econômico, conflitos, aumento dos preços dos alimentos. Alguns destes fatores, ou a sua combinação, contribuíram para os níveis alarmantes de desnutrição que vimos na Nigéria, Etiópia, Quênia, Afeganistão, Chade e Iêmen durante o ano.
Em Baidoa, na Somália, onde a seca prolongada foi agravada por anos de conflito e resposta humanitária inadequada, as nossas equipes atendiam, por vezes, 500 crianças com desnutrição aguda por semana.
Resistência à migração
A Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) estimou que cerca de 100 milhões de pessoas em todo o mundo foram forçadas a se deslocar em 2022. Algumas ficaram encurraladas nas fronteiras entre a Belarus, a Letônia, a Lituânia e a Polônia, onde se depararam com atos de resistência constantes e frequentemente violentos. Desde o início do ano, enfrentamos dificuldade para prestar assistência às pessoas nessas regiões devido a políticas hostis que restringiram o nosso acesso. No entanto, o agravamento da guerra na Ucrânia, no final de fevereiro, expôs uma contradição nas políticas de migração europeias: milhões de ucranianos - fugindo do conflito, assim como muitas das pessoas retidas na fronteira com a Belarus - foram autorizados a entrar na União Europeia como refugiados, de forma rápida e fácil.
Os refugiados e migrantes que chegam à fronteira norte do México também continuaram a ser rechaçados pelos EUA, alegando agirem segundo o disposto pelo Título 42, uma política de décadas atrás que está sendo amplamente utilizada desde março de 2020 para regular a travessia da fronteira, sob a premissa de reforço das medidas preventivas contra a COVID-19. Enquanto isso, milhares de migrantes que rumam em direção à costa do Mediterrâneo no norte da África - ou fugindo dos perigos na Líbia - foram expulsos da Argélia para o Níger e abandonados na fronteira, no meio do deserto.
O rechaço teve continuidade também no mar; em setembro, Malta obrigou um navio a levar pessoas resgatadas da sua zona de busca e salvamento no Mar Mediterrâneo Central para o Egito, em clara violação do direito marítimo e internacional.
Nos cinco anos desde que mais de 750 mil Rohingyas fugiram da violência indescritível no estado de Rakhine, em Mianmar, a vida da minoria perseguida não melhorou. As pessoas que chegam à Malásia de barco em busca de segurança têm sido forçadas a regressar ao mar ou têm sido detidas, presas e incriminadas. Em Bangladesh, os Rohingyas vivem em condições precárias e insalubres, e o seu direito de circular pelo acampamento onde vivem 1 milhão de pessoas e trabalhar foi severamente restringido, agravando ainda mais a angústia das pessoas.
Avanços no tratamento da TB, mas desafios permanecem
No final do ano, o New England Journal of Medicine publicou os resultados do nosso ensaio clínico TB-PRACTECAL, que averiguou a eficácia e a segurança de um regime de tratamento totalmente oral de seis meses para tuberculose resistente a medicamentos (TB-DR). O regime curou 90% dos pacientes, o que representa uma melhoria significativa em relação aos tratamentos padrão anteriores, que levam normalmente dois anos até que sejam concluídos, com apenas cerca de metade dos pacientes curados. Agora, as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS) para o tratamento da tuberculose (TB) foram atualizadas.
A ampliação de regimes mais curtos e exclusivamente orais será essencial para a adesão ao tratamento e para a cura. Mas isso só acontecerá se os medicamentos usados nesses tratamentos forem acessíveis. Os preços da bedaquilina e da delamanida, usados em nossos ensaios TB-PRACTECAL e/ou endTB e endTB-Q, ainda são altos demais para uso em larga escala em muitos países com elevada incidência da doença, e devem baixar.
Assim como o TB-PRACTECAL, os ensaios endTB e endTB-Q também buscam regimes mais curtos, mais seguros e mais eficazes, inclusive para pacientes menores de idade. Isso é duplamente importante, levando em consideração o novo algoritmo recomendado pela OMS para diagnosticar a TB em crianças.
O impacto da retórica anti-ONGs nas atividades de MSF
Em algumas partes do mundo, nossas equipes continuaram a sentir os efeitos da retórica do antiterrorismo e anti-ONGs. Quatro colegas da nossa equipe na região sudoeste de Camarões foram presos e acusados de serem cúmplices de separatistas depois de transportar um paciente com ferimento à bala em uma ambulância para o hospital em Mamfé. Eles passaram entre 10 meses e pouco mais de um ano na prisão, antes de serem absolvidos em julgamento ocorrido no final de dezembro. Devido à falta de garantias no que se refere à segurança de nossas equipes, fomos obrigados a primeiro suspender e depois encerrar nosso projeto em Mamfé, o que reduziu ainda mais a oferta de cuidados de saúde numa região com imensas necessidades.
O acesso a cuidados de saúde continuou sendo uma questão no Tigré e em outras partes da Etiópia no ano seguinte aos assassinatos de nossos colegas María, Yohannes e Tedros, em junho de 2021. Desde então, trabalhamos incansavelmente para entender todas as circunstâncias por trás do que aconteceu com nossos colegas e para conseguir que haja reconhecimento da responsabilização pelos fatos que levaram a seus assassinatos. Apesar dos investimentos feitos no engajamento em reuniões bilaterais com autoridades, a falta de progresso na obtenção de respostas esclarecedoras levou MSF-Espanha a se retirar do país.
No Afeganistão, o Emirado Islâmico do Afeganistão (também conhecido como Talibã) continuou a retirar as liberdades das mulheres desde que retomou o poder, em agosto de 2021. Em dezembro, decretos foram publicados restringindo o acesso de meninas e mulheres à educação e proibindo mulheres de atuar em ONGs, com uma exceção informal feita para aquelas que trabalham na área da saúde. Embora possamos manter as mulheres em nossas equipes - por enquanto -, estamos profundamente preocupados com o longo prazo, uma vez que as estudantes de medicina não podem concluir sua formação para se tornarem médicas, enfermeiras e especialistas muitíssimo necessárias para o sistema de saúde do país.
Nossas equipes testemunharam a criminalização da oferta de ajuda em alguns locais, incluindo o Mali e o Níger. Isso tornou extremamente difícil chegar às pessoas atingidas por conflitos na região fronteiriça do Sahel no Níger, no Mali e em Burkina Faso.
Nosso trabalho não é isento de riscos, com profissionais atuando sob a ameaça de ataques, sequestros ou detenção. Apesar dos desafios nesta zona do Sahel e em outros lugares onde trabalhamos em 2022, nossas equipes conseguiram oferecer cuidados vitais a milhões de pessoas. Mas esse trabalho não teria sido possível sem o apoio dos nossos quase 7 milhões de doadores, aos quais somos muito gratos.
*Por Diretores de Operações de MSF - Dr. Ahmed Abd-elrahman, Dr. Marc Biot, Akke Boere, Dr. Sal Ha Issoufou, Kenneth Lavelle, Isabelle Mouniaman, Teresa Sancristoval.