O enclave palestino de Gaza sofre bloqueio por parte de Israel há mais de uma década, período durante o qual seu povo testemunhou três guerras e outros surtos frequentes de violência. A economia está em queda livre e a situação humanitária continua a deteriorar-se. Israel só permite que um pequeno número de pessoas saia, e, como a fronteira com o Egito também está frequentemente fechada, as pessoas sentem-se presas — e, de fato, muitas vezes estão.
Os protestos da “Grande Marcha do Retorno”, realizados na fronteira quase todas as sextas-feiras, desde 30 de março, foram recebidos com disparos de armas de fogo do exército israelense. No fim de 2018, 180 pessoas haviam sido mortas a tiros, e 6.239, feridas a bala — a grande maioria sofrendo ferimentos nas pernas. Nossas equipes têm lutado para responder a essas lesões complexas e graves.
Como tratar milhares de ferimentos semelhantes, todos demandando tratamentos de múltiplos estágios, que potencialmente duram anos?
“Não estávamos preparados para o que aconteceu. Estávamos observando cada foguete lançado de Gaza, cada assassinato e bombardeio, imaginando se isso desencadearia uma nova guerra, uma ainda mais violenta do que a de 2014. Contudo, não tínhamos imaginado o número de pessoas que seriam baleadas durante os protestos da Marcha do Retorno. Esses protestos transformaram-se em banhos de sangue, ocorrendo com uma regularidade tão implacável, mês após mês, que nos tornamos quase habituados a eles.
Em 30 de março de 2018, ficamos assombrados quando soubemos que mais de 700 pessoas haviam sido feridas e 20 mortas a tiros por soldados israelenses posicionados na cerca que separa Israel de Gaza. A partir daquele momento, todo um esquema foi colocado em operação para responder às enormes necessidades e, desde então, não parou mais. Sexta-feira após sexta-feira, centenas de pacientes com ferimentos a bala foram tratados em hospitais do Ministério da Saúde. Metade dos feridos acabou em nossas clínicas para atendimento pós-operatório.
Nossas equipes em campo trabalharam incansavelmente, para ampliar nossas capacidades, aumentando rapidamente o recrutamento e o treinamento. Trouxemos cirurgiões, anestesistas e outros especialistas para tratar o influxo maciço de pacientes feridos; apesar disso, nossas instalações esforçaram-se para gerir os casos, mas foram rapidamente sobrecarregadas pelo número e pela gravidade dos ferimentos.
Juntamente com as outras organizações humanitárias em Gaza, tivemos que nos preparar rapidamente para 14 de maio, porque havia numerosos apelos para protestos contra a inauguração da embaixada americana em Jerusalém naquele dia. Era uma segunda-feira sombria um dia de guerra. Isso fez com que nossos colegas palestinos traumatizados se lembrassem da guerra de 2014. Para mim, trouxe de volta memórias de 5 de dezembro de 2013, em Bangui, República Centro-Africana, quando os anti-Balaka atacaram a cidade: os corpos que chegaram no espaço de poucas horas; as equipes sobrecarregadas; o horror diante da tragédia.
Em Gaza, a partir daquela segunda-feira, o esquema entrou em colapso e, exceto por poucas calmarias, não houve descanso. Toda semana há novos pacientes, muitos com fraturas expostas, com risco de infecção, que exigirão meses — senão anos — de cuidados médicos, procedimentos cirúrgicos e reabilitação. Alguns se tornarão inválidos por toda a vida. Tudo isso ocorreu em um território sob bloqueio, onde o sistema de saúde já era incapaz de oferecer cuidados adequados para todos. Os feridos de Gaza têm sido amplamente abandonados simplesmente por causa de seu local de nascimento.
Os jovens palestinos que vemos em nossas clínicas sentem-se sem esperança, como se não tivessem futuro. Claro, alguns podem ter sido manipulados pelas autoridades para protestar ao longo da cerca. Ou podem ter simplesmente protestado contra uma vida injusta e a falta de liberdade. Leis, liberdades pessoais e direitos humanos são desconsiderados por todos os lados. Milhões de pessoas tornaram-se meros peões em jogos políticos nos quais elas têm pouco a dizer.
Hoje, nossas equipes continuam fazendo todo o possível para tratar as feridas desses jovens e impedir a perda de seus membros, embora saibamos que só poderemos curar uma pequena parte deles por causa das restrições impostas pelo bloqueio israelense e pelas várias autoridades palestinas. Sentimos pavor a cada momento de maior tensão, esperando novamente o irrompimento de uma guerra em Gaza, como ocorreu em 2014. Se isso não acontecer, talvez consigamos abordar as complexas necessidades médicas — incluindo o tratamento de infecções ósseas, cirurgia reconstrutiva e fisioterapia — de alguns dos que ficaram com deficiências por causa de seus ferimentos, antes que seja tarde demais. Especialistas em cirurgias, especialistas em antibióticos e um novo laboratório capaz de analisar amostras ósseas são necessários para lidar com ferimentos graves, como fraturas expostas. Estamos fazendo tudo o que podemos para encontrar essas pessoas e recursos, tanto em Gaza quanto no exterior.
A situação em Gaza coloca-nos diante de desafios humanos, técnicos, logísticos e financeiros, mas estamos empenhados em oferecer a melhor resposta possível. Não desistiremos, mesmo se não tivermos os recursos necessários e mesmo se o contexto político não estiver a nosso favor, com as necessidades médicas das pessoas caindo para o fim das prioridades das autoridades. Estamos lutando e, se salvarmos apenas alguns jovens, já teremos tido sucesso.”
História de Mohammed
“Fui ferido durante o protesto da 'Grande Marcha de Retorno' na sexta-feira, 6 de abril. Eu sabia que era perigoso, mas eu fui mesmo assim – todo mundo foi. Eu estava lá parado quando fui baleado. Eu senti a bala quebrando meu osso.
Passei por seis operações até agora, incluindo operações de desbridamento (para limpar a ferida com a retirada de tecido danificado e objetos estranhos) e uma operação para fechar a ferida. Então, me disseram que eu poderia precisar passar por uma amputação depois de fechar a ferida.
No início, eu vinha diariamente à clínica de MSF para receber tratamento. Agora eu venho três vezes por semana para fisioterapia e para ter os curativos na minha perna trocados. Depois de receber fisioterapia, me sinto melhor. Os espasmos diminuem e é mais fácil mover meus músculos.
Por que eu estava protestando? Eu sou como todo palestino – nós passamos por muitos conflitos com Israel e isso é interminável. Fui protestar na fronteira porque é nosso direito e esta é a nossa terra. Eu fui lá apenas com esse propósito.
Eu não voltei. Eu não posso me mover. Eu fico em casa. Eu durmo por algumas horas e depois sou acordado pela dor. Se eu puder ter minha perna de volta como costumava ser, então talvez eu possa voltar a trabalhar e ter um futuro.”
O fisioterapeuta de MSF, Abu Hashim, explica a lesão de Mohammed
“Fraturas como as de Mohammed ocorrem após trauma de alto impacto e força considerável. O tecido mole foi destruído e o osso foi quebrado. Ele também recebeu um enxerto de pele. Mas a coisa mais complicada sobre a lesão de Mohammed é que seu nervo peroneal comum foi completamente cortado, fazendo com que seu pé caia – o que significa que ele não é capaz de andar corretamente e pode ficar deficiente por toda a vida. A fisioterapia é muito dolorosa para ele, mas vital para evitar a rigidez articular e mover os músculos.”